16 de junho de 2010

História de Gilgamesh (Jorge Luis Borges)


Texto retirado de um livro do escritor argentino Jorge Luis Borges. Irresistível, tomei a liberdade de transcreve-lo pra o blog. Lembro que foi o primeiro que li de Borges. O texto é baseado em um mito mesopotâmico de criação do mundo. O livro do Genesis foi escrito quando os judeus estavam no exílio na Babilônia e foi muito influenciado pela religião babilônica, que também tem o conceito do dilúvio. Na época do exílio Deus dos Exércitos e o Deus compassivo tornaram-se também no Deus criador do Universo, claro que numa visão monoteísta. Istar (Astartéia, Ishtar, Vênus) é retratada como muito má, essa é uma visão masculina, o lado gaúcho do Borges.



Gilgamesh, dois terços deus, um terço homem, vivia em Erech. Invencível entre os guerreiros, governava com mão de ferro; os jovens o serviam e ele não deixava incólume uma só donzela. O povo rogou a proteção divina, e o senhor do firmamento ordenou a Aruru (a deusa que havia modelado o primeiro homem com argila) que modelasse um ser capaz de enfrentar Gilgamesh e tranqüilizar seu povo.
Aruru formou uma criatura a quem deu o nome de Enkidu. Era peludo, tinha longas tranças, cobria-se com peles, vivia com as feras e comia erva. Dedicou-se, também, a destroçar armadilhas e a salvar animais. Quando Gilgamesh se inteirou disso, ordenou que se enviasse a ele uma donzela nua. Enkidu possuiu-a durante sete dias e sete noites, no final das quais as gazelas e as feras o desconheceram e ele notou que suas pernas já não eram tão ligeiras. Havia-se transformado em homem.
A menina achou que Enkidu se tinha tornado formoso. Convidou-o a conhecer o templo resplandecente onde o deus e a deusa se sentavam juntos, assim como toda a Erech, onde Gilgamesh imperava.
Na véspera do ano novo Gilgamesh preparava-se para a cerimônia da hierogamia quando apareceu Enkidu e o desafiou. A multidão, embora surpreendida, sentiu-se aliviada.
Gilgamesh havia sonhado que estava de pé sob as estrelas, quando do firmamento caía sobre ele um dardo que não se podia arrancar. Depois, uma tocha enorme se incrustava no centro da cidade.
Sua mãe lhe disse que o sonho previa a chegada de um homem mais forte do que ele e que se tornaria seu amigo. Lutaram os dois e Gilgamesh foi atirado ao pó por Enkidu, que compreendeu, todavia, que seu contendor não era um tirano jatancioso e sim um valente que não se desviava. Levantou-o, abraçou-o e ambos firmaram amizade.
Espírito aventureiro, Gilgamesh propôs a Enkidu cortar um dos cedros do bosque sagrado. "Não é fácil — respondeu-lhe este — pois está guardado pelo monstro Humbaba, de voz de trovão, e com um olho único cuja mirada petrifica a quem observa; vomita fogo e seu hálito é uma praga".
"Que dirás aos teus filhos quando eles te perguntarem o que fazias no dia em que tombou Gilgamesh?"
Isto convenceu Enkidu.
Gilgamesh contou seu plano aos anciãos, ao deus do sol, à sua própria mãe, à rainha celestial Ninsun, e todos o desaprovaram. Ninsun, que conhecia a teimosia de seu filho, pediu para ele a proteção do deus do sol e a obteve. Então, nomeou Enkidu seu guarda de honra.
Gilgamesh e Enkidu chegaram a floresta dos cedros. O sono venceu-os;
O primeiro sonhou que uma montanha desabava sobre ele, quando um homem bem apessoado liberou-o da pesada carga e ajudou-o a pôr-se de pé.
Disse Enkindu: — Está claro que derrotaremos Humbaba.
Enkidu por sua vez sonhou que o céu retumbava e a terra estremecia, que imperavam as trevas, que caía um raio e ocorria um incêndio e que a morte chovia do céu, até que a resplandecência diminuiu, apagou-se o fogo e as centelhas caídas se transformaram em cinza.
Gilgamesh interpretou isto como»uma mensagem adversa, porém convidou Enkindu a continuar. Derrubou um dos cedros, e Humbaba se preciptiou sobre eles. Pela primeira vez Gilgamesh sentiu medo. Os dois amigos, porém, dominaram o monstro e lhe cortaram a cabeça.
Gilgamesh limpou-se da poeira e vestiu suas roupas reais. A deusa Istar apresentou-se a ele e pediu que fosse seu amante, prometendo cobri-lo de riquezas e rodeá-lo de deleites. Mas Gilgamesh conhecia a traidora e inflexível Istar, assassina de Tammuz e de inumeráveis amantes. Despeitada, Istar pediu a seu pai que lançasse à terra o touro celestial, e ameaçou romper as portas do inferno e deixar que os mortos sobrepujassem os vivos.
— Quando o touro desça dos céus, sete anos de miséria e de fome cobrirão a terra. Previste isto?
Istar respondeu que sim.
O touro então foi lançado à terra. Enkidu torceu-o pelos chifres e lhe cravou a espada no pescoço. Junto com Gilgamesh, arrancou o coração do animal e ofertou-o ao deus do sol.
Das muralhas de Erech, Istar presenciava a luta. Saltou por cima dos baluartes e amaldiçoou Gilgamesh. Enkindu arrancou as nádegas do touro, atirando-as no rosto da deusa.
— Gostaria de fazer-te o mesmo!
Istar foi derrotada e o povo aclamou os matadores do touro celestial. Mas não é possível zombar dos deuses.
Enkidu sonhou que os deuses estavam reunidos em assembléia, deliberando sobre quem seria o maior culpado, se ele ou Gilgamesh, da morte de Humbaba e do touro celestial. O principal culpado morreria. Como não chegavam a um acordo, Anu, o pai dos deuses, disse que Gilgamesh, não apenas tinha matado o touro, como também tinha cortado o cedro. A discussão tornou-se violenta e os deuses se insultaram uns aos outros. Enkidu despertou sem conhecer o veredicto. Narrou seu sonho a Gilgamesh e durante a longa insônia que se seguiu recordou sua despreocupada vida animal. Mas lhe pareceu ouvir vozes que o consolavam.
Várias noites depois tornou a sonhar. Um forte grito chegava do céu até a terra e uma espantosa criatura com cara de leão e asas e garras de águia o apresava e o levava ao vazio. Saíram-lhe plumas dos braços e começou a parecer-se com o ser que o levava. Compreendeu que havia morrido e que uma harpia o arrastava por um caminho sem volta. Chegaram à mansão das trevas, onde as almas dos grandes da terra o rodearam. Eram desajeitados demônios com asas emplumadas, que se alimentavam de restos. A rainha do inferno lia em suas tábuas e pesava os antecedentes dos mortos.
Quando despertou, os dois amigos se inteiraram, do veredicto dos deuses. E Gilgamesh cobriu o rosto de seu amigo com um véu e, com grande dor pensou: Agora já vi o rosto da morte.
Em uma ilha nos confins da terra vivia Utnapishtin, um homem muito, muito velho, o único mortal que havia conseguido escapar da morte. Gilgamesh decidiu buscá-lo e aprender com ele o segredo da vida eterna.
Chegou ao fim do mundo, onde uma altíssima montanha elevava seus picos gêmeos ao firmamento e enfiava suas raízes nos infernos. Um portão era guardado por criaturas terríveis e perigosas, metade homem, metade escorpião. Avançou decidido e disse aos monstros que ia em busca de Utnapishtin.
— Ninguém jamais chegou até ele nem logrou conhecer o segredo da vida eterna. Guardamos o caminho do sol, que nenhum mortal pode transitar.
— Eu o farei — disse Gilgamesh. E os monstros, compreendendo que se tratava de um mortal não comum, deixaram-no passar.
Penetrou Gilgamesh; o túnel se fazia cada vez mais escuro, até que um ar lhe chegou ao rosto e entreviu uma luz. Quando saiu a elá, encontrou-se em um jardim encantado, onde resplandeciam pedras preciosas.
A voz do deus do sol chegou até ele. Encontrava-se nos jardins das delícias e desfrutava de uma graça que os deuses não haviam outorgado a nenhum mortal. "Não esperes alcançar mais".
Gilgamesh, porém avançou além do paraíso, até que, cansado, chegou a uma pousada. A estalajadeira Siduri confundiu-o com um vagabundo, mas o viajante se deu a conhecer e contou seu propósito.
— Gilgamesh, nunca encontrarás o que buscas. Os deuses criaram os homens e lhe deram a morte por destino; para eles mesmos reservaram a vida. Saberás que Utnapishtin vive em uma ilha longínqua, além do oceano da morte. Mas eis aqui Urshanabi, seu barqueiro, que se encontra na pousada.
Tanto insistiu Gilgamesh, que Urshanabi concordou em transportá-lo, não sem antes preveni-lo de que por nenhum motivo tocasse as águas do oceano.
Muniram-se de cento e vinte varas, mas foi necessário que Gilgamesh utilizasse sua camisa como vela.
Quando chegaram, Utnapishtin lhe disse:
— Ah, jovem, nada há de eterno na terra. A mariposa vive somente um dia. Tudo tem seu tempo e época. Mas eis aqui meu segredo, somente conhecido dos deuses.
E lhe contou a história do dilúvio. O bondoso Ea o havia prevenido, e Utnapishtin construiu uma arca na qual embarcou com sua família e seus animais. Em meio à tempestade navegaram sete dias, e a barca encalhou no topo de uma montanha. Soltou uma pomba para ver se as águas haviam baixado, porém a ave voltou por não encontrar onde pousar. O mesmo ocorreu com uma andorinha. O corvo, porém, não regressou. Desembarcaram e fizeram oferendas aos deuses, porém o deus dos ventos os fez reembarcar e os conduzir até onde estavam agora, para que aí morassem eternamente.
Gilgamesh compreendeu que o ancião não tinha nenhuma fórmula para lhe dar. Era imortal, mas somente por um favor único dos deuses. O que Gilgamesh buscava não poderia ser achado deste lado da sepultura.
Antes de despedir-se, o velho disse ao herói onde poderia achar uma estrela do mar com espinhos de rosa. A planta concedia a quem a saboreasse uma nova juventude! Gilgamesh obteve-a do fundo do oceano, porém quando descansava de seu esforço, uma serpente a roubou, comeu-a, desprendeu-se de sua velha pele e recobrou a juventude.
Gilgamesh compreendeu que seu destino não diferia do destino do resto da humanidade e regressou a Erech.

Conto babilônico do segundo milênio A.C.
História de Gilgamesh (Jorge Luis Borges, Livro dos Sonhos, tradução Claudio Fornari)
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